A pregação da urgente necessidade de cortes nos gastos públicos, por parte do governo e da mídia corporativa, tem sido justificada com base em experiências e observações de orçamentos familiares. Como representantes dos economistas, cabe-nos combater essa abordagem falaciosa. Os limites de endividamento de uma família são bem mais rígidos que os de uma empresa e os desta, que os de um Estado.
Em geral, uma família não tem como se endividar para aumentar suas receitas futuras, por isso, aumentar os pagamentos de dívidas exige reduzir poupança e, depois, as próprias despesas correntes. Uma empresa, por sua vez, pode ter oportunidades de se endividar para financiar algum projeto que eleve sua receita futura. Seriam dívidas que se pagam. Um Estado, além de mais oportunidades de fazer gastos que empreguem recursos ociosos da economia e viabilizem investimentos privados, elevando o PIB e a arrecadação de tributos, quando se endivida em sua própria moeda ainda pode pagar suas dívidas com emissões monetárias.
A liquidez atual dos títulos públicos é equiparável a da moeda e o acúmulo de ambos pode induzir as instituições financeiras a aumentar as operações de crédito. Assim, as despesas do governo e as concessões de crédito irão elevar a demanda no setor real. Não havendo capacidade ociosa, teremos pressões inflacionárias. Assim, é no setor real que teremos os limites dos gastos e endividamento públicos.
Contudo, para os defensores de cortes incondicionais nas despesas do governo, elevações em sua dívida aumentam os riscos avaliados pelos detentores, provocando aumentos nas taxas de juros e consequente inibição dos investimentos. Na realidade, os efeitos do endividamento público sobre as taxas de juros e destas nos investimentos são parciais e incertos. Mesmo que entrem em operação, as elevações de demanda também decorrentes de aumentos desses gastos, podem ter ação contrária suficiente para assegurar expansão dos investimentos e da atividade econômica.
Os grandes projetos globais são alocados entre os países com base em fatores mais estruturais, como localização, mão de obra, infraestrutura, insumos e instituições, muito mais que em taxas internas de juros conjunturais. Os investimentos para atender ao mercado interno, por sua vez, serão determinados, decisivamente, pela demanda pelo que se vai produzir. Nenhum projeto será executado, quaisquer que sejam as taxas de juros, sem compradores suficientes para os produtos.
Um terceiro argumento é que aumentos do endividamento público podem causar ainda fuga de capitais. Mesmo que esse processo venha a ocorrer, não traria maiores danos em nossas atuais condições financeiras com o exterior. Os déficits nas transações financeiras com o exterior podem ser financiados com entradas de capitais, especulativos ou não especulativos, e variação das reservas internacionais do país.
No Brasil, desde 1998 esses déficits têm sido financiados, integralmente, com investimentos estrangeiros diretos e empréstimos de longo prazo, capitais não especulativos. Assim, não temos necessitado de capitais voláteis para manter nossas transações com o exterior. Também, fugas desses capitais especulativos não causariam, necessariamente, choques indesejáveis de taxas de câmbio, pois atingimos montante de reservas internacionais suficientemente elevado, com média trimestral de 80% do investimento estrangeiro em carteira, de 2015 a 2020, o que asseguraria o controle das taxas de câmbio até em fugas de capitais de maior intensidade.
As mais recentes restrições aos gastos, aprovadas com a PEC emergencial, agora Emenda Constitucional 109, não são necessárias para viabilizar auxílio emergencial. Penalizam o servidor público, com eventuais congelamentos de remuneração; restringe e precariza os serviços públicos, com proibições de contratações de servidores; além de reduzir, drasticamente, os incentivos fiscais, instrumento indispensável, em todos os países, para induzir o crescimento econômico, sobretudo em setores identificados como estratégicos pelo governo. Observe-se que esses gastos e incentivos devem ser realizados de modo eficiente e justo, sem espaço para remunerações e privilégios abusivos de castas do serviço público, contrações desnecessárias de servidores ou incentivos fiscais com finalidades diferentes da busca do crescimento inclusivo.
Assim, na atual conjuntura de alto desemprego e possibilidade de ampliar a utilização de capacidade, gastos públicos, mesmo elevando o endividamento, podem proporcionar impulso suficiente na atividade econômica e até se pagarem com a elevação de receita tributária que provocaria. É inaceitável tantas restrições, legais e até constitucionais, para reduzir esse endividamento público, quando os limites estariam nos recursos ociosos vigentes, esperando que os investimentos privados floresçam em mercados sem compradores.
CONSELHO FEDERAL DE ECONOMIA
20 DE MARÇO DE 2021