Por Marco Flávio da Cunha Resende, professor do Departamento de Economia da UFMG/Cedeplar, pesquisador do CNPq e do FINDE, conselheiro do Corecon-MG.
A pandemia em escala mundial deixou claros os limites do mercado em solucionar problemas econômicos, tais como a queda da renda agregada, falências de empresas de todos os portes e o aumento do desemprego. Após o período conhecido como “era de ouro do capitalismo”, em que a economia mundial cresceu a taxas historicamente elevadas entre o pós-guerra e os anos 1960, iniciou-se o desmonte paulatino do Estado baseado na difusão de uma visão dicotômica entre Estado e mercado. Durante a crise financeira mundial de 2008, esta visão foi temporariamente afastada e o pedido de socorro, em particular dos mercados financeiros dos países desenvolvidos, foi prontamente atendido pelo governo e banco central dos Estados Unidos e, posteriormente, da Zona do Euro, Japão, etc. Atualmente, um arsenal de políticas fiscais e monetárias vem sendo implementado nos diversos países para socorrer empresas e a população, dada a incapacidade dos mecanismos de mercado em fazê-lo.
Todavia, é falsa a dicotomia entre Estado e mercado. Estes devem atuar em cooperação, em prol do desenvolvimento econômico e social. O economista britânico John M. Keynes, que construiu um corpo teórico alternativo à teoria convencional durante a Grande Depressão dos anos 1930, apontou este caminho. Ele defendeu a importância da demanda e da participação do Estado com suas políticas para estimulá-la, visando suavizar o ciclo econômico e sustentar o cenário de taxas elevadas de crescimento da economia e do emprego. Para Keynes, Estado e mercado devem ser complementares.
O que o levou a romper com a teoria convencional, que considera o mercado o mecanismo mais eficiente para produzir crescimento econômico, emprego e bem-estar social, foi sua constatação de que o mercado não contém todas as informações que seriam necessárias para o cálculo matemático ou estatístico requerido para se prever o futuro de variáveis econômicas – hipótese que faz parte dos axiomas da teoria convencional e, em geral, da crença (implícita) de ortodoxos economistas, jornalistas e analistas de mercado. Não é à toa que instituições e economistas erram sistematicamente suas projeções sobre o futuro crescimento da economia, do emprego, da inflação, etc. O que há diante dos empresários é a total incerteza sobre o futuro, não havendo garantia de retorno dos investimentos. Por isso, são tão ariscos na sua função de investir e gerar emprego, como também os bancos, ao conceder crédito a consumidores e empresários. Ao menor sinal de crise ou desaceleração da economia, todos correm para a liquidez em detrimento da alocação da riqueza em investimentos produtivos, que geram renda e emprego, porém são ilíquidos, e sem liquidez a preservação da riqueza não está garantida. O resultado seria a deficiência de demanda (e de vendas das empresas), levando ao desemprego, queda dos salários reais e concentração da renda. Ou seja, quando há recrudescimento da incerteza sobre o futuro, os mecanismos de mercado não funcionam. Por isso, não deve haver mais mercado e menos Estado, ou o contrário. Deve prevalecer mais mercado e mais Estado, ambos atuando em cooperação.
Visto que o mercado não contém os sinais que informariam sobre a trajetória futura da economia e variáveis econômicas, só o Estado é capaz de guiar as expectativas e, portanto, as decisões dos agentes econômicos, em articular dos empresários (investidores). A capacidade estatal de guiar os agentes decorre de suas várias fontes de poder: (I) emitir moeda; (II) estipular e arrecadar impostos; (III) realizar amplo escopo de políticas; (IV) estabelecer leis e afetar a estrutura institucional da sociedade; (V) ter amplo aparato administrativo à sua disposição. Por isso Keynes apontava que a realização de políticas econômicas coordenadas ao estímulo do investimento privado e à consecução da estabilização dos ciclos econômicos era uma das ações fundamentais do Estado.
A política fiscal Keynesiana deve ser contracíclica, com os investimentos públicos sendo reduzidos nos períodos de crescimento econômico e elevando-se nas fases de queda cíclica da economia, de modo a suavizar o ciclo econômico e garantir um orçamento fiscal intertemporalmente equilibrado, sem pressionar a dívida pública. Ademais, o governo não deve competir com o setor privado, devendo investir onde em geral este não investe, como é o caso do investimento em infraestrutura, que acena com o lucro para o empresário ao reduzir seus custos de produção e garantir um nível mínimo de emprego, renda e demanda agregada futura. O mesmo ocorre com investimentos públicos em saúde e educação, que elevam a produtividade do trabalho. Nestes casos, o Estado estará sendo cooperativo e atuando de modo complementar ao setor privado. Por fim, ao contrário do que se prega, para Keynes o equilíbrio fiscal sempre foi necessário porque a decisão de investir dos empresários requer otimismo e confiança de que seu empreendimento será lucrativo no futuro. Mas, o otimismo se esvai, e com ele os investimentos, quando o descontrole das contas públicas aponta para um futuro sombrio ao trazer a possibilidade de recessão e/ou inflação. Daí a necessidade de a política fiscal ser contracíclica, pois déficits públicos durante a desaceleração/recessão econômica seriam financiados com os superávits públicos alcançados nos períodos de ascensão cíclica da economia, mas não com dívida pública.
Portanto, esta não é uma visão binária, em que o Estado é sempre corrupto e ineficiente e o mercado competente e virtuoso. A liberalização dos mercados financeiros nos Estados Unidos e no mundo favoreceu a crise mundial de 2008. Onde estava a louvada eficiência do mercado? A corrupção está em ambos, Estado e mercado, pois só é possível quando o Estado faz a triangulação com o mercado, por exemplo, no processo de superfaturamento de preços de produtos e serviços que o Estado comprará no mercado. Sem mercado, o Estado não conseguiria roubar dele mesmo. A despeito da presença de corrupção e ineficiência, em maior ou menor grau a depender da sociedade, só o Estado tem poder para guiar as expectativas dos agentes e fomentar a confiança em expectativas que induzam o aumento dos investimentos privados e do emprego.
No caso brasileiro atual, o governo resiste às políticas de cunho Keynesiano, que deveriam estar sendo implementadas desde março, quando o cenário futuro desolador já era claro. O ministro da economia ainda se baseia na teoria convencional e cria dificuldades para ampliar os gastos requeridos para salvar empresas da falência e a população da fome. Ele anuncia que gastará cerca de R$ 1 trilhão com o resgate da economia, mas boa parte destes recursos é só injeção de liquidez no sistema financeiro, para evitar falências de instituições financeiras; é dinheiro que não chega na ponta, para empresas e população. Outra parte destes recursos também não está chegando na ponta. Cite-se o caso do crédito (R$ 40 bilhões) a micro, pequenas e médias empresas, destinado ao pagamento da folha salarial. Trata-se de programa mal desenhado. Que empresário assumirá uma dívida, em lugar de demitir parcela de seus funcionários, para começar a pagá-la em seis meses e com juros de 3,75% a.a., em um cenário de absoluto pessimismo para 2020/2021? Qual banco arcará com o risco deste crédito, ainda que 15% do crédito (o Tesouro deu garantia de 85% do mesmo)?
A situação é extraordinária e requer medidas extraordinárias: i) redução mais rápida da taxa de juros (Selic) para um patamar próximo a zero concomitantemente a adoção de controle total de saída de capitais para evitar fuga de capitais e aumento do preço do dólar – na hesitação de se adotar tal medida, há um caminho “meia boca”, a saber, não se adota controle de capitais, mas apenas redução dos juros para algo entre 1% e 2, 25%, indo até o limite de não se provocar forte depreciação cambial; o Banco Central (Copom) deveria estar se reunindo a cada 15 dias para realizar uma queda mais rápida dos juros sem deixar de acompanhar de perto seus efeitos no mercado, em particular sobre a taxa de câmbio; ii) emissão de moeda e dívida pública para transferir dinheiro diretamente para pessoas carentes, porém, para um contingente maior de pessoas e até meados de 2021, pois os R$ 600,00 distribuídos atualmente são só por três meses e alcançam menos de 60 milhões de pessoas. Estes recursos seriam também transferidos para Estados e Municípios, cuja arrecadação caiu muito e seus gatos aumentaram no âmbito das medidas locais de suporte à saúde. Eles seriam transferidos também para empresas e vinculados ao pagamento de salários, mas seria um crédito com taxa de juros zero depois de excluídos os custos operacionais dos bancos, 100% de garantia do Tesouro e prazo de carência de dois anos.
Esta política pode ser feita com a emissão de moeda e dívida pública, e não é incoerente com a visão Keynesiana esboçada acima. Esta será a maior crise da história da economia brasileira e, por isso, a emissão de moeda não causará inflação, seja durante a recessão, seja na fase de recuperação da economia. A emissão de dívida pública produzirá um desequilíbrio fiscal adicional, com a relação dívida/PIB alcançando cerca de 100%. Mas o problema com a trajetória desta relação é haver confiabilidade na mesma para que empresários mantenham seus investimentos. Porém, os investimentos já desabaram e nem aqui ou em qualquer outro país se acredita na estabilidade da relação dívida/PIB dos governos. Logo, não há mais investimento e confiança a serem preservados, não faz sentido evitar o resgate da economia e da população em nome da manutenção de níveis de investimento e confiança que já viraram pó. Ademais, quanto maior for a emissão monetária (que não é inflacionária no atual contexto), menor será a emissão de dívida pública. Por fim, taxas de juros muito baixas e uma reforma tributária progressiva, em que ricos pagam proporcionalmente a sua renda e patrimônio mais que pobres, ajudará a restabelecer a estabilidade da relação dívida/PIB. Estas providências urgem, mas os economistas do governo ainda não entenderam a economia, infelizmente.