Em parceria com o IE-Unicamp, o terceiro episódio da série Memórias e Futuro da Economia Brasileira aborda os padrões monetários utilizados no País.
No dia 1º de julho o real completa 30 anos de circulação e o terceiro episódio da série Memórias e Futuro da Economia Brasileira, em parceria com o Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE- Unicamp), fala sobre as moedas que já vigoraram no País, desde a primeira – o real português – até a atual. Quem conversou conosco foram os professores André Biancarelli, Fernando Cerqueira Lima e Ivan Salomão.
Por ocasião do descobrimento do Brasil, em 1500, a moeda vigente em Portugal chamava-se real, e eram utilizadas moedas de ouro, prata e cobre. Quando se iniciou o processo de colonização, tal moeda também passou a ser a unidade monetária no Brasil. No entanto, nem sempre era possível encontrá-las em circulação, o que fazia com que outros meios de pagamento fossem aceitos – mas sempre tendo o real como unidade de valor.
“Em diversas circunstâncias foram usados outros meios de pagamento, como o açúcar, ou panos de algodão e sementes de cacau”, explica Cerqueira. “Há a própria definição do Keynes de algo que já era aceito no século XVIII: meio de pagamento é aquilo que o governo diz que é. O governo determinava que uma arroba de açúcar valia tantos reais, e aceitava aquilo como pagamento de impostos. A mesma coisa com os panos de algodão e, depois, com o ouro em pó”.
Embora o conceito de inflação não existisse como nos dias atuais, ao longo do tempo o real se desvalorizou muito em relação ao ouro e à prata. “Por causa da necessidade que os portugueses tinham de financiar as guerras da restauração, quando eles se separaram da Espanha. E isso influenciou também no Brasil”, explica Cerqueira. “A técnica para fazer isso era chamada de levantamento. Então a moeda de um tostão, que valia, por exemplo, 100 réis, passava a valer 150. Isso significava uma desvalorização do real. Aquela quantidade de prata que estava no tostão, que era uma moeda de prata, passava a valer mais”.
Após a independência o real continuou sendo a unidade de valor no Brasil. Como a moeda circulou por muito tempo em cédulas múltiplas de mil, tornou-se muito comum o uso do termo mil réis, e um milhão de réis era chamado de um conto de réis. No ano de 1833 um conto de réis correspondia a cerca de 1,4 quilos de ouro 22 quilates.
O real continuou sendo a moeda brasileira depois da Proclamação da República. Houve tentativas de fazer com que a moeda brasileira pudesse ser convertida em ouro, mas elas esbarravam no fato de que havia várias emissões diferentes no mercado – o Banco do Brasil, o Tesouro Nacional e a Caixa de Conversão emitiam notas de mil réis.
Em 1926 houve o projeto de criar o cruzeiro de ouro, que teria sua cotação estabelecida no valor de dez mil réis. O próprio termo cruzeiro vinha do desejo de dar a moeda um nome nacional, já que real era considerado uma herança portuguesa. No entanto, o projeto foi abandonado após a crise de 1929 e a revolução de 1930. Com o desgaste do valor do padrão monetário brasileiro, o cruzeiro foi lançado em 1942 – mas, ao contrário do projeto original, não era conversível em ouro e passou a ser equiparado à antiga moeda na razão de um cruzeiro para mil réis.
“Há uma especificidade bastante importante nesta época, que é a eclosão da Segunda Guerra em 1939. Ao longo da primeira metade dos anos 40, se observa um recrudescimento da inflação”, conta o professor Ivan Salomão. “Os Estados Unidos e a Europa eram os principais fornecedores de alguns bens industrializados para o Brasil. Naquele período, os países beligerantes concentravam suas economias no esforço de guerra e o Brasil teve dificuldade para importar alguns bens”.
Outra característica da inflação brasileira tinha a ver com o balanço de pagamentos. Quando o governo promovia uma desvalorização no câmbio a fim de facilitar as exportações, gerava pressões inflacionárias. Assim, nos anos 50 a inflação foi mais do que o dobro daquela verificada nos anos 40.
“Tanto o fechamento da economia brasileira quanto o estrangulamento estrutural do Balanço de pagamentos, somados a uma política econômica por vezes expansionista, seja do ponto de vista fiscal ou do ponto de vista monetário, reforçava a inflação por meio da monetização do déficit público”, explica Salomão.
A inflação continuou subindo nos primeiros anos da década de 1960 e, em 1965, o governo militar instituiu uma nova moeda – o cruzeiro novo. Ele passou a vigorar a partir de 1967, com o corte de três dígitos do antigo padrão monetário. A mesma resolução previa que a nova moeda seria, mais tarde, renomeada para cruzeiro, o que aconteceu em 1970.
Num primeiro momento, o regime militar conseguiu reduzir a inflação em relação ao que se observava antes. Durante o período conhecido como milagre econômico, o governo controlava preços por meio de órgãos como a Comissão Nacional de Estímulo à Estabilização de Preços (Conep) ou o Conselho Interministerial de Preços (CIP).
Em 1973 ocorreu o primeiro Choque do Petróleo. Devido à pouca quantidade de divisas de que o País dispunha para importar o produto, o governo Geisel lançou o segundo Plano Nacional de Desenvolvimento, com investimentos em infraestrutura industrial e energias alternativas.
“O Proálcool era uma maneira de atenuar a dependência da economia brasileira do petróleo, cujo preço se espraia pela formação de todos os outros preços”, afirma Salomão. “Durante os anos 70 o governo investiu fortemente em setores de infraestrutura e combustíveis. Mas quando da eclosão do segundo Choque do Petróleo, a situação de fato saiu do controle. As condições de financiamento das economias periféricas foram totalmente alteradas”.
Com a crise gerada pelo segundo Choque do petróleo e pela subida dos juros internacionais, o Brasil foi obrigado a fazer um ajuste no início dos anos 80 para controlar o balanço de pagamentos. As medidas levaram o cruzeiro a uma forte desvalorização, além de colocarem o País numa recessão severa. A inflação superou a marca de 100% ao ano pela primeira vez na história e passou de 200% ainda em 1984. O cruzeiro perdia cada vez mais o seu valor nominal e, em 1986, o governo Sarney lançou um plano de estabilização que, entre outras medidas, instituía o cruzado como nova moeda brasileira.
“Em 1986 o governo Sarney lançou o Plano Cruzado. O governo anunciou um congelamento de preços por tempo indeterminado, ao mesmo tempo que concedia reajuste para os salários nominais e para o salário mínimo”, conta Salomão. “O congelamento se mostrou uma medida bastante inadequada para controlar a inércia inflacionária”.
Quando não foi mais possível segurar o congelamento de preços, a inflação voltou a subir, superando 300% em 1987 e quase 1.000%. em 1988. O período foi marcado por vários planos de estabilização que acabaram não atingindo o objetivo: depois do Plano Cruzado, em 1986, houve o Plano Bresser em 1987. A inflação continuava alta e, por isso, já em 1989, com o lançamento do Plano Verão, foi feito um novo corte de três zeros no valor nominal da moeda e estabelecido o cruzado novo, que circulou por apenas um ano e dois meses. A inflação de 1989 foi próxima de 2.000%.
Ao assumir o governo em 1990, o presidente Fernando Collor de Mello anunciou um novo plano econômico, que ficou conhecido pelo confisco de poupança. Este mesmo plano mudou novamente o nome da moeda para cruzeiro, mas o problema da inflação persistia. Em 1991 foram lançadas as cédulas de Cr$ 10 mil e Cr$ 50 mil; no ano seguinte, a de Cr$ 100 mil; e em 1993, já no governo Itamar Franco, a de Cr$ 500 mil. O Conselho Monetário Nacional tinha um projeto para lançar as cédulas de Cr$ 1 milhão e Cr$ 5 milhões, mas em agosto daquele ano houve um novo corte de zeros e entrou em vigor um novo padrão monetário, o mais efêmero da história do Brasil: o cruzeiro real.
A inflação de 1993 foi a mais alta da história do Brasil, chegando a quase 2.500% ao ano. Enquanto isso, o governo trabalhava num plano de estabilização diferente dos anteriores, estabelecido sobre três pilares: o fiscal, com o ajuste das contas públicas; a desindexação da economia, usando a Unidade Real de Valor (URV); e a âncora cambial.
“A ideia de que a inflação tem como uma das principais causas o desequilíbrio das contas públicas é ortodoxa. A formulação do Plano Real, em meados de 1993, começa com um ajustamento das contas públicas” explica o professor André Biancarelli. “A inflação brasileira mascarava o resultado das contas públicas, mesmo que o déficit não parecesse tão ruim”.
Para desindexar a economia, em planos anteriores foi tentado o congelamento de preços; no Plano Real, a estratégia foi acelerar os reajustes no tempo, aumentando a inflação e convergindo os valores num único superindexador, a URV.
“O terceiro pilar, a partir de julho, é a questão cambial. A nova moeda estava ancorada no dólar. Começou com a cotação de 1 para 1, mas se apreciou e chegou a R$ 0,85 por dólar”, relembra Biancarelli. “Este é um mecanismo poderoso de controle de preços, utilizado em todos os processos inflacionários crônicos. Não existe nenhum exemplo de controle de uma inflação complicada como a nossa sem uso de alguma forma de taxa de câmbio para ajudar a controlar os preços. Na minha avaliação, com o benefício de três décadas, os três pilares são importantes, mas o decisivo foi o terceiro”.
Durante os primeiros anos de existência do real, a economia brasileira esteve bastante vulnerável ao que ocorria no exterior. Crises como a do México (1994), países asiáticos (1997) e Rússia (1998) tiveram efeitos no Brasil, até chegar à maxidesvalorização da moeda brasileira em 1999.
“Alguns autores costumam dizer que o sucesso do Plano Real criou as sementes da sua própria ameaça: um déficit cada vez maior no balanço de pagamentos. Dependíamos do fluxo de financiamentos externos para fechar as contas”, analisa Biancarelli. “Deu certo enquanto o mundo tinha fluxos de capital à vontade. Quando começaram a aparecer crises em outros países, esse fluxo de financiamentos externos diminui. O primeiro sinal de fogo foi a crise mexicana. A partir de 1997 começa a ter outras crises com ingredientes parecidos. O Brasil vive uma certa agonia prolongada de uma receita que estava um pouco fadada ao fracasso, que era a manutenção de uma taxa de câmbio que não era rigorosamente fixa, mas que era muito controlada”.
Desde a implementação do Plano Real, a inflação brasileira tem estado sob controle e apenas quatro vezes superou a marca de 10% ao ano. Com trinta anos de vigência, o real já é a segunda moeda brasileira com mais tempo de duração (atrás, apenas, do real português). A inflação se encontra abaixo dos patamares verificados na década de 1940, que marca o início dos índices utilizados para calcular este indicador. Por isso, ao completar três décadas de circulação, cabe a pergunta: será que a economia brasileira conseguiu atingir uma maturidade monetária?
“Se for a ideia de uma inflação sob controle, que não será de 40% ao mês, ou de 400% ao ano, sim. Desde 1995 nossa inflação é bem comportada para os padrões históricos brasileiros e para padrões de países periféricos”, aponta Biancarelli. “Em alguns momentos ela passou de 10%, o que é uma taxa relativamente alta, mas para padrões históricos brasileiros, não é escandalosa. Decorre de alguns desequilíbrios e problemas específicos. Desde 1996, nunca mais superou 20% ao ano”.
Para Biancarelli, cabe também a reflexão de que não se pode achar que podemos ter uma inflação no mesmo nível de países desenvolvidos. “Somos um país periférico cuja moeda não é de primeiro nível na hierarquia financeira internacional. O Brasil sofre choques de preços de commodities, de energia, de oferta e isso torna a nossa economia mais propensa a ter episódios de inflação. Mas uma inflação de 5% ao ano não está descontrolada”, finaliza.
Os participantes
Fernando Cerqueira Lima é graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com mestrado em Planejamento Urbano pela mesma instituição, doutorado em economia pela Universidade de Cardiff e pós-doutorado pela Universidade de Lisboa. É professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Ivan Colangelo Salomão é mestre em economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutor pela mesma instituição. É professor da Universidade de São Paulo e também já trabalhou na Universidade de Caxias do Sul, Universidade Estadual de Ponta Grossa, Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Federal do Paraná.
André Martins Biancarelli é graduado, mestre e doutor em economia pela Universidade Estadual de Campinas, onde também foi diretor do Instituto de Economia (IE-Unicamp) e hoje é professor associado (livre docente).
Ouça o episódio “Do Real ao Real” abaixo.