Por Wallace Marcelino Pereira
Doutor em Economia pela UFMG e conselheiro do Corecon-MG

Analisar o desempenho da economia brasileira não é tarefa simples. Mais complexo se torna em meio a condições conjunturais e estruturais que condicionam o Brasil a uma trajetória do qual o país não merece. O tema é mais sério do que se imagina e as impressões que tenho é a de que o tratamento sobre a condição da economia brasileira muito se aproxima da obra “Candido ou o Otimista” de Voltaire. O viés Panglossiano sobre o resultado do PIB de 2021 precisa ser mais moderado.

No dia 04 de março o IBGE [1] divulgou o resultado do PIB para o ano de 2021 e não faltaram anúncios otimistas nos meios de comunicação. O PIB cresceu 4,6% em 2021 frente a 2020 sendo capitaneado pelos serviços (4,7%) e pela indústria (4,5%). Nada de excepcional com esses números, se não pela manutenção da trajetória de baixo crescimento econômico que persiste desde a recessão econômica de meados de 2010.

Esse resultado suscita duas questões importantes que devem ser analisadas. A primeira é a dimensão de curto prazo e conjuntural que trata do ritmo da atividade econômica brasileira no bojo da disseminação do COVID-19. A segunda trata de uma perspectiva de longo prazo e estrutural, e, portanto, na perspectiva de uma estratégia de desenvolvimento. Essa é mais significativa do ponto de vista do futuro do país porque devido a questão temporal, o que torna o problema de difícil percepção por parte da população e de parte dos formuladores de política econômica, praticamente não é discutido abertamente.

O crescimento de 4,6% trata-se mais de uma recomposição da produção do que efetivamente um crescimento robusto e sustentável. Era de se esperar que o setor de serviços apresentasse um desempenho tão significativo. Afinal, pela sua própria natureza a prestação dos serviços demanda contato humano, aspecto esse que se tornou inviável devido a forma de contágio do Coronavírus.

Com a vacinação em massa as interações humanas puderam ser restabelecidas. Logo, com a retomada das atividades presenciais esse setor teria de apresentar um desempenho expressivo. A indústria também apresenta algumas características semelhantes, porém em escala menor no que tange a questão da presença humana no ato produção fabril.

De toda forma, é preciso ser prudente ao analisar o desempenho da indústria e dos serviços, pois importa saber se essa recuperação se perpetuará nos próximos meses e se esse crescimento é qualificado. Isso não parecer ser a tendência para os próximos meses. Recentemente [2], o IBGE divulgou mais um resultado mostrando que o setor industrial apresentou queda de 2,4% em janeiro de 2022 frente ao mês de dezembro de 2021 (série com ajuste sazonal), mostrando que a recuperação de 2021 não está tendo fôlego suficiente para se manter. Além disso, a taxa de desemprego tem oscilado acima de 10%, sendo que no 4º trimestre de 2021 esteve em torno de 11%.

A persistência do desemprego compromete a capacidade de consumo presente e futuro da população e tem reflexos nas perspectivas de investimento de longo prazo por parte dos empresários. A pesquisa “Mapa da Inadimplência e Renegociação de Dívidas no Brasil” elaborado pelo SERASA [3] e divulgado em dezembro de 2021 aponta que 75% das famílias brasileiras estão endividadas e que cada um desses consumidores deve, em média, R$ 3.938,51. O quadro não é animador no curto prazo.

Como herança imediata do atual momento é de bom alvitre lembrar a ausência de uma política econômica clara e que fortalecesse a economia brasileira durante a escalada do quadro pandêmico. Além disso, no plano internacional, a eminência de uma guerra em larga escala na Europa amplifica os efeitos inflacionários sobre o país, já decorrentes do período pandêmico. Qual a estratégia nacional para atravessar as turbulências supracitadas? Deixar a economia ao livre sabor de choques externos não parece ser uma boa estratégia de desenvolvimento nacional.

No que tange ao longo prazo, podemos dizer no limite que a situação é desafiadora. Desde meados da década de 1980 a participação da indústria no PIB tem declinado progressivamente (perda de aproximadamente 20 p.p.). O Brasil era um dos países mais industrializados do mundo e atualmente está com a participação abaixo da América Latina (Figura 01A).

Isso significa que o país está perdendo a capacidade de gerar inovação tecnológica, criar empregos qualificados, melhorar a produtividade, bem como aprofunda a dependência de bens manufaturados estrangeiros de maior conteúdo tecnológico. Ou seja, o crescimento do PIB (14,6%) e da indústria (4,5%) em 2021 tem um significado estrutural pontual, tendo em vista que o tecido produtivo nacional está se deteriorando a décadas. O contentamento com o desempenho de 2021 não é compatível com o desempenho econômico necessário para garantir a prosperidade econômica e social. Para isso são necessários investimentos sucessivos ao longo de décadas e a inclusão permanente de amplas parcelas da população no mercado de trabalho. Ou seja, só é viável por meio de uma estratégia de desenvolvimento econômico perene.

Figura 01 – Desempenho brasileiro na indústria e nas exportações, 1970 a 2018/2020

Fonte: UNCTADstat

E a ausência dessa estratégia de desenvolvimento perene tem implicações sérias. Se considerarmos a participação brasileira na exportação de mercadorias notamos que o desempenho nacional também não é significativo. O Brasil não está sendo competitivo e não consegue ganhar mercados internacionais com bens manufaturados (Figura 01B). Se no ano de 2000 6% das exportações era composta por aviões e helicópteros e 3,13% era de veículos, no ano de 2019 regredimos a ponto de ter petróleo cru (10,6%), ferro (9,9%) e soja (11,4%) como os principais produtos exportados (Figura 02 A e B).

A especialização regressiva avança sobre a economia brasileira e tem efeitos deletérios profundos no tecido social e econômico. Logo, a especialização em produtos primários e a desindustrialização refletem no aumento do trabalho informal e no progressivo número de trabalhadores em ocupações precárias tais como a atividades relacionadas aos aplicativos de transporte de passageiros e entrega de alimentos.

Figura 02 – Produtos das exportações brasileiras, 2000 e 2019 (%)

Fonte: Observatório da Complexidade Econômica

Além disso, o fenômeno da desindustrialização tem implicado no aumento do setor de serviços tradicionais (restaurantes, hotéis, lojas de departamentos etc.) que absorvem profissionais pouco qualificados (garçons, atendentes, vendedores etc.) e pagam salários baixos, ao passo que, nos países desenvolvidos, esse processo tem contribuído para a expansão de serviços modernos (Tecnologia da Informação, Pesquisa e Inovação etc.) que absorvem mão de obra mais especializada (engenheiros, profissionais de computação etc.) e com salários mais elevados.

Portanto, qual o significado e as implicações do resultado do PIB de 2021? Em primeiro lugar, mostra que a economia brasileira mantém o ritmo de baixo crescimento, com forte tendência à estagnação. Esse resultado não permite dizer que as expectativas vão melhorar a ponto da geração de emprego se expandir. Nesse sentido, o consumo continuará restrito e as famílias estarão se preocupando com questões imediatas relacionadas à alimentação e o pagamento de contas dos serviços básicos. Investimento em qualidade de vida é item fora do cardápio familiar.

Nestas condições, o desemprego e o baixo dinamismo econômico retroalimenta a falta de perspectiva das camadas mais pobres da população. Sem perspectiva de renda estável, as classes menos abastardas não podem se dedicar plenamente aos estudos, e nem podem oferecer um leque de qualificações aos seus filhos. A demanda por escolas e serviços de saúde públicos aumenta sem a devida contrapartida dos governos municipal, estadual e federal. O ciclo de deterioração econômico e social está garantido.

Em segundo lugar, os resultados divulgados pelo IBGE mostram o resultado da falta de estratégia de desenvolvimento econômico atual e evidência as consequências da ausência de uma política de desenvolvimento nacional de longo prazo. Desde meados da década de 1980 o país assiste à deterioração da estrutura produtiva e perda de participação no mercado de produtos manufaturados. O breve interregno da primeira década dos anos 2000 não foi suficiente para reverter o quadro de desarticulação econômica e social.

A trajetória é muito clara e demandará um esforço intelectual e operacional de reconstrução nacional jamais visto. A formação do consenso em torno do desenvolvimento econômico tornou-se mais complexo, na medida em que mesmo com baixo crescimento e elevado desemprego, instituições e grupos sociais com capacidade efetiva de investimento tem mantido lucros sucessivos. Convencer essa parcela da sociedade de que a manutenção do Brasil nessa trajetória terá implicações indesejáveis para ricos e pobres não é, e nem será fácil. Não há mais tempo para se ler a economia brasileira com um viés Panglossiano. Acredito que nem o próprio Cândido estaria animado a esse ponto.

[1] Mais detalhes: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/33067-pib-cresce-4-6-em-2021-e-fecha-o-ano-em-r-8-7-trilhoes

[2] Relatório de 09 de março de 2021. Mais detalhes: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/33122-producao-industrial-recua-2-4-em-janeiro

[3] Mais detalhes: https://www.serasa.com.br/assets/cms/2022/MKTECS-654-Mapa-da-Inadimplencia-Dezembro-2-1.pdf

Conteúdo originalmente publicado no portal Brasil de Fato

Cândido e a economia brasileira: o Panglossiano resultado do PIB de 2021

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